Comer, Beber, Governar
Artigo de Revista

“O principal motivo da criação da capitania de Mato Grosso, em 1748, foi impedir que os espanhóis tomassem a região e chegassem a Goiás e Minas Gerais. Era a época em que Portugal e Espanha discutiam as cláusulas do Tratado de Madri, finalmente assinado em 1750, que fixou os contornos aproximados da atual fronteira brasileira, substituindo o Tratado de Tordesilhas (1494).

Para reforçar ainda mais a presença na região, os portugueses estabeleceram em 1752, às margens do Rio Guaporé, a Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso. (…). Para homenagear a realeza portuguesa, estreitar os laços diplomáticos com os vizinhos espanhóis, comemorar os dias de santo ou saudar os oficiais que faziam a demarcação de limites da região, foram realizadas vinte e oito reuniões em torno da mesa farta entre 1760 e 1789.

Os dois primeiros banquetes de que se tem registro, em novembro de 1760, tiveram como objetivo fazer agrado aos vizinhos. Foram oferecidos ao espanhol José Nunes Cornejo, governador da vizinha província de Santa Cruz de la Sierra (hoje na Bolívia), pelo capitão-general Antônio Rolim de Moura (1709-1782), conde de Azambuja, primeiro governador da capitania (…) e fundador de Vila Bela.

Quem fez desses eventos uma tradição local (…) foi outro militar: o capitão-general Luís de Albuquerque. Ele ofereceu vinte e seis banquetes, entre os quais um diplomático. Em agosto de 1783, emissários espanhóis foram enviados a Vila Bela para levar correspondência ao capitão-general e, de quebra, verificar como andava a ocupação portuguesa nas terras ainda em litígio. Foram tão bem recebidos que ninguém diria que havia ali uma disputa entre dois impérios.

Embora tenha organizado essas refeições coletivas quase todos os anos em dezembro para lembrar o aniversário de D. Maria I, o forte de Luís de Albuquerque eram as festas populares. Ao longo de seu governo, ele deu vários banquetes em homenagem a Santo Antônio de Lisboa, de quem era devoto e em cuja homenagem mandou construir uma igreja.

(…)

Dependendo da situação financeira da capitania, em alguns anos havia mais fartura que em outros. Mas nunca se abriu mão de utensílios importados de Lisboa para servir e cozinhar. Caçarolas eram trazidas da metrópole junto com toalhas de mesa, guardanapos, pratos, talheres e castiçais. Muitos alimentos também eram portugueses, como farinha, embutidos, queijos, azeite, biscoitos, chocolate, vinho e aguardente. Era a oportunidade de se experimentarem pratos diferentes, com ingredientes finos, fugindo da comida do dia a dia. Na hora do preparo, os cozinheiros misturavam os produtos vindos de Portugal com os da terra, como milho, feijão, mandioca e derivados da cana-de-açúcar. Na sobremesa, as frutas locais eram consumidas ao natural ou em compota, servidas com os doces típicos portugueses, adaptados aos ingredientes locais. Para beber havia os sucos de frutas, entre as quais se destacavam laranja, limão e melancia.

O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), ao analisar esses banquetes no livro Contribuição para uma sociologia da biografia (1978), sobre Luís de Albuquerque, presumiu que no cardápio houvesse ‘peixes e talvez caça das águas e das matas tropicais de Mato Grosso’. Ele se baseou no fato de que, naquela época, os produtos oriundos da caça faziam parte do cardápio das refeições mais finas oferecidas na Europa. Até a Revolução Francesa, ‘a caça permaneceu uma prerrogativa da nobreza, portanto um símbolo de status’.

No Brasil, o costume da caça durou até o século XIX, e se em Mato Grosso não havia peixes de água salgada nem salmões e trutas como em Portugal, encontrava-se um substituto à altura no pacu: um peixe ‘da classe dos salmões do (rio) Minho acima, do mesmo gosto e do mesmo volume’, segundo relato do astrônomo e matemático Antônio Pires da Silva Pontes Leme (1750-1804), de 1781. Integrante da equipe que produziu o ‘primeiro reconhecimento cartográfico e as medições astronômicas precisas’ da região, Silva Pontes falava com conhecimento de causa: ele foi um dos que experimentaram os banquetes oferecidos por Luís de Albuquerque.

(…)

Prestigiados, os viajantes se sentavam sempre às melhores mesas, ao lado das figuras mais respeitadas da região, enquanto os soldados, por exemplo, ficavam em mesas piores. Era a mesma hierarquia que havia nas procissões religiosas, em que os ricos ocupavam os primeiros lugares e os demais fieis ficavam atrás.

O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) foi outro viajante que experimentou os banquetes de Vila Bela. Ele percorreu o Pará, o Rio Negro e Mato Grosso de 1783 a 1793 estudando a flora e a fauna da região. Luís de Albuquerque criou até uma instituição chamada ‘mesa real’, que correspondia às despesas e serviços realizados para alimentar os funcionários reais empregados nas demarcações de limites. As refeições eram oferecidas no palácio do governador.

Mas o número de banquetes diminuiu bastante depois de 1789, quando o capitão-general foi substituído no cargo por seu irmão João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (? – 1796). Vila Bela foi perdendo prestígio aos poucos e deixou de ser o centro do poder de Mato Grosso em 1824, quando a capital da então província foi transferida para Cuiabá. Ainda assim, hoje a culinária local guarda vestígios de uma época em que jantares podiam ser muito mais do que uma simples refeição.”

Sobre este documento

Título
Comer, Beber, Governar
Tipo de documento
Artigo de Revista
Palavras-chave
Minas Gerais História em Quadrinhos Cangaço
Origem

Masilia Aparecida da Silva Gomes, “Comer, Beber, Governar”. Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, Nº 60, setembro de 2010, pp. 62-5.

Créditos

Masilia Aparecida da Silva Gomes