História com “h” minúsculo
Artigo de Jornal

“Há tempos me intriga a presença, no meio das listas de livros mais vendidos, do “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, do jornalista Leandro Narloch (…) [que], em linhas gerais, propõe um ‘guia’ para ‘reler’ a história do Brasil sem, aparentemente, nem sequer tê-la lido bem. Me causou espanto, por exemplo, não detectar na bibliografia consultada nem nas notas de rodapé do jornalista os nomes de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior ou Fernando Novais, entre os historiadores mais famosos e importantes do país.

Com relação a negros e índios, Narloch usa uma visão bastante distorcida (…) de interpretação da história. Nela, os brancos não teriam sido assim tão maus e a colonização resultara boa para todos. Diz Narloch dos indígenas, por exemplo: ‘queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam’. Ou: ‘Perceberam que muitos nativos se mudaram para vilas por iniciativa própria, provavelmente porque se sentiam ameaçados por conflitos com os brancos ou cansados da vida do Paleolítico das aldeias’.

Narloch faz generalizações rasas sobre o que identifica como alma dos países. Algo um tanto quanto infantil e banalizante, para concluir que o Brasil é um país ‘bipolar’ em crise com sua identidade. Anota ele: ‘Haveria aquele país que mal notaria a existência dos outros, como a França, talvez os Estados Unidos. A Alemanha se seguraria calada, sofrendo de culpa, desconfortável consigo e com os colegas ao redor. Uma quarentona insone, em crise por não ser tão rica e atraente quanto no passado, representaria muito bem a Argentina. Claro que haveria também países menos problemáticos, como o Chile ou a Suíça, contentes com a sua pouca relevância. Não seria o caso do Brasil, paciente que sofreria de diversos males psicológicos. Bipolar, oscilaria entre considerações muito negativas e muito positivas sobre si próprio.’ E conclui: ‘a identidade nacional foi sempre um problema psicanalítico no Brasil’.

Mais à frente, surge outra pérola: ‘Existem muitos lugares irrelevantes pelo mundo —como Porto Rico, a Bélgica, o Panamá— o que não chega a ser um problema.’

Em outro momento infeliz, compara o nacionalismo de Mário de Andrade aos de Hitler e Stálin. Só porque o modernista publicou obras ‘sobre modinhas do tempo do império, folclore, música popular, música de feitiçarias e danças dramáticas’.

O momento mais delicado, obviamente, é aquele em que trata da ditadura. É cada vez mais comum que novos estudos promovam uma releitura menos ideologizada do período e que cada vez menos se fale em ‘mocinhos’ e ‘bandidos’, como sugere Narloch. Mas o rapaz toma tão claramente um só partido da dicotomia que diz tentar combater que fica até feio. Chega a dizer coisas duvidosas, que qualquer estudioso sério da ditadura ao menos relativizaria, do tipo: ‘Qualquer notícia de movimentação comunista era um motivo justo de preocupação. A experiência mostrava que poucos guerrilheiros, com a ajuda de partidários infiltrados nas estruturas do Estado, poderiam sim derrubar o governo.’

Não sou da opinião de que a história só pode ser escrita por historiadores das universidades. No Brasil mesmo há ótimos exemplos de trabalhos de divulgação científica (gênero ainda muito recente por aqui) feitos por autores que não são historiadores de formação. (…). Infelizmente, o que Narloch faz não se enquadra nisso. Apesar de partir de uma boa ideia, caiu em armadilhas e chegou a um resultado lastimável”.

Sobre este documento

Título
História com “h” minúsculo
Tipo de documento
Artigo de Jornal
Palavras-chave
América Portuguesa Viajantes Fauna
Origem

Sylvia Colombo. História com “h” minúsculo – Folha de São Paulo. 15/02/2011 seção “Crônicas de Buenos Aires”

Créditos

Sylvia Colombo