“Fizemos uma ótima travessia até os Brasis, e chegamos à Baía de Todos os Santos, no porto de São Salvador (…). E não fazia muito tempo que ali me encontrava quando fui recomendado à casa de um homem bom e honesto (…) que possuía um ‘engenho’, como dizem, a saber, uma plantação de cana e uma casa de refino de açúcar. Morei com ele algum tempo, e assim me familiarizei com as maneiras do plantio e da produção do açúcar. E, vendo como os donos viviam e como enriqueciam depressa, decidi, se obtivesse licença para me estabelecer ali, que me transformaria em produtor de açúcar como eles (…). Com esse fim, obtendo uma espécie de carta de naturalização, comprei o máximo de terras incultas que meu dinheiro permitia(…).
Entre os meus vizinhos havia um português de Lisboa, filho de pais ingleses (…) sua propriedade ficava junto à que eu comprei, e nos dávamos muito socialmente (…) começamos a crescer, e nossas propriedades foram ganhando ordem, de maneira que no terceiro ano plantamos um pouco de tabaco, e cada um dos dois preparou um bom lote de terra para o plantio de cana no ano seguinte. Mas ambos precisávamos de mãos.
(…)
O leitor pode imaginar que tendo eu vivido a essa altura quase quatro anos nos Brasis, começando a prosperar e a aumentar a produção da minha propriedade, não só aprendi a língua como também travei conhecimento e amizade com vários outros proprietários, além de mercadores de São Salvador, que era nosso porto (…). Ouviam sempre atentamente (…) minhas histórias, e especialmente a parte que falava da compra de Negros; que na época era um tráfico muito praticado, e sempre por asientos, ou concessões dos reis de Espanha e Portugal, registradas em documentos públicos; de maneira que poucos Negros eram trazidos, e os que chegavam eram excessivamente caros.
Ocorreu que, tendo eu estado na companhia de alguns comerciantes e donos de terras que conhecia (…) três deles vieram ter comigo na manhã seguinte, dizendo que tinham refletido muito (…) e queriam me fazer uma proposta secreta. E depois de me pedirem que jurasse segredo, contaram seu intento de aparelhar um navio para ir à Guiné; que todos tinham terras como eu, e o que mais lhes faltava eram escravos; que como era um tráfico que não se podia praticar, pois não seria possível vender publicamente os Negros que viessem, desejavam fazer uma única viagem trazendo Negros para suas terras particulares, dividindo o total entre suas propriedades; numa palavra, a questão era se eu aceitava embarcar como comissário daquela carga no navio [e] eu ficaria com uma parte igual de Negros, sem precisar contribuir com dinheiro algum (…).
(…) para mim, assim assentado e estabelecido (..) aceitar fazer essa viagem era a coisa mais absurda de que se poderia acusar um homem nas mesmas circunstâncias.
Mas eu, que nasci fadado a ser meu próprio destruidor, não pude resistir à proposta (…). E assim, o navio aparelhado e o carregamento concluído, subi a bordo em má hora, no dia 1º de setembro de 1659”
Sobre este documento
Daniel Defoe. Robinson Crusoé. São Paulo: Penguin/ Companhia das Letras, 2001 [1719], pp. 83-91.
Daniel Defoe