“A questão (…) surgiu graças à intervenção do explorador saxão Robert Hermann Schomburgk que, na década de 1830, realizou uma série de visitas exploratórias à região, após o que sugeriu… para a Guiana inglesa um traçado fronteiriço que ficou conhecido como Schomburgk line [‘Linha de Schomburgk’]. Essa linha, que adentrou tanto em territórios brasileiros como venezuelanos, passou, logo em seguida, a ser apresentada pelo governo inglês como sendo o limite oficial de sua colônia sul-americana.
(…) É surpreendente que opiniões de um único desbravador possam ter criado uma contenda territorial internacional, na qual não se reivindicava a volta a quaisquer limites imemoriais ou se levantava qualquer dúvida geográfica, como sucedeu, por exemplo, com a questão fronteiriça do Brasil com a França em razão da Guiana Francesa, ou com a Argentina, em razão das Missões. Tal surpresa acentua-se quando se constata a pouca importância econômica que a área em questão tinha para a Inglaterra: ‘uma região em que não existe uma única vaca’, teria dito, com certo desprezo, o Ministro dos Estrangeiros britânico, lorde Salisbury, discutindo a pendência com o advogado brasileiro. Como poderia um simples particular, mesmo sendo cientista já de certo renome, agindo por conta de uma sociedade científica privada, baseado exclusivamente em sua opinião pessoal, ter criado uma questão de fronteira? Quais reais interesses visava a Inglaterra satisfazer ao adotar oficialmente a linha fronteiriça sugerida pelo futuro sir Robert Hermann Schomburgk?
(…) Em um primeiro momento, pensou-se ser possível
relacionar a questão de limites com a luta desenvolvida pela Inglaterra contra o tráfico de escravos para o Brasil, ao menos na sua primeira fase. Ou seja, o objetivo primordial da Inglaterra, ao levantar a questão pela primeira vez, não seria aumentar a extensão geográfica da sua colônia sul-americana e, sim, criar um instrumento a mais de pressão contra o governo brasileiro na sua porfia pela extinção do tráfico negreiro para o Império do Brasil.
Consultando-se os documentos ingleses conseguiu-se (…) relacionar o nascimento da questão com o movimento abolicionista inglês. Schomburgk, ao escrever sobre a necessidade de a Inglaterra definir as fronteiras da Guiana inglesa, alertou para o fato de que o Brasil continuava, em pleno século XIX, a escravizar indígenas. Para interessar a opinião pública inglesa na questão, e dessa forma forçar o gabinete inglês a incorporar a região do Pirara aos domínios de Sua Majestade Britânica, tentou-se envolver no caso a Sociedade Protetora dos Aborígenes (Aborigines Protection Society) cujo presidente, Thomas Fowell Buxton, era então influente membro do Parlamento inglês.
Além desse momento fugidio, mas crucial, o relacionamento entre a luta do movimento contrário ao tráfico de escravos e a questão fronteiriça do Brasil com a Inglaterra, na região das Guianas, não encontrou amparo em provas documentais. Ou seja, ainda que o relacionamento escravidão-fronteira tenha sido invocado internamente para pressionar a Inglaterra a incorporar a reivindicação territorial na sua pauta de negócios com o Brasil, não parece ter influído na condução do caso, uma vez que já estava instalado. Assim sendo, a hipótese, ainda que se mostrando válida para o primeiríssimo momento, foi descartada no estudo dos estágios posteriores do problema.
(…) a análise dos documentos existentes tanto no Brasil como na Inglaterra leva à conclusão de que o conflito nasceu de uma ação conjunta, mas não coordenada, de missionários protestantes, que atuavam na região, e altos funcionários coloniais, estes últimos preocupados em fazer Londres perceber o zelo com que tratavam a coisa pública posta sob sua guarda. (…) A escravidão indígena foi um argumento inteligentemente usado, mas que se mostrou decisivo apenas para o surgimento da questão.”
Glossário
Porfia: discussão verbal acirrada ou obstinada; disputa acirrada de qualquer natureza, competição, disputa, rivalidade.
AULETE, Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. Lisboa [Portugal]: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, Disponível em: http://www.auletedigital.com.br/
Sobre este documento
Adaptado de José Theodoro Mascarenhas Menck. A Questão do Rio Pirara (1829-1904). Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009, pp. 25-28.
disponível em: http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/0574.pdf