“No dia 25 do corrente apparaceo nesta huma insurreição de pretos, que felizmente falhou. Conheceo-se então os Nagôs trabalhavão à muito tempo nella, pois se achou huma caza de reunnião, onde apprehendeo-se grande quantidade de livros, e outros papeis escriptos por elles com caracteres Arabicos, dos quaes por falta de traductor ignora-se o contheudo. Segundo o que se pôde colher, a insurreição deveria arrebentar pelas 4 horas da manhã, tempo em que aqui sahem os escravos para o serviço, a fim de podem todos reunniram se. Por-se-hia fogo à Cidade baixa, logo que o Povo, como he de costume, para lá concorresse, romperia o massacre sobre a gente inerme e, desappercebida. Para melhor assegurar o bom exito da empreza, elles conservarão-na em segredo, de sorte que todos os pretos não socios só tiveram conhecimento d’ella na noite do rompimento, quando convidados para tomarem parte. Na noite do dia 24 soubesse por denuncia de algumas pretas, que se convidavão os pretos para insurgirem-se pela madrugada, e valeo isto para os Srs, que poderão ter noticia vigiar sobre seus escravos, e o Prezidente fazer dobrar os guardas, e aviza-las do que hia haver. Pelas duas horas houve denuncia de que se reunião os pretos em uma caza da Cidade alta, e para ella marchou o Comandante dos Permanentes com poucos homens: chegados ao lugar perguntarão à uma parda que estava na janella, se havia gente dentro da caza, ao que respondeo, que ninguem, porém recusando abrir a porta, deu isto motivo á suspeita, e o Comandante ordenou que esta fosse arrombada; o que ouvido pelos pretos, bem que não estivessem preparados para aquella hora, todavia vendo que hião a ser descobertos, em número de 50 abrirão a porta, e atirarão-se sobre a gente que estava, com hum foror indisivel. Vinhão elles vestidos uniformemente de cabeças rapadas, alguns com insignias, certos papeis que se supõe Proclamações, patuás trazendo todos por diviza hum argolão de prata no dedo polegar da mão esquerda, e tendo como armas espadas. Os Municipaes que achavão fóra não sendo em numero sufficiente para resistir, depois de uma descarga, retiram se milagrosamente, levando poucos feridos. Sahirão os pretos com grande alarido, batendo com as espadas pelas portas das cazas, como sinal para a chamada; porém as precauções que se tinha tomado fez que não se ajuntassem se não uns cento e tantos. Estes divididos em grupos marcharão a attacar todas as Guardas, e Quartéis da Cidade, de certo para se apoderarem do armamento, e nisto estava toda a nossa felicidade, porque os soldados prevenidos poderão resistir-lhes com pouca perda.
Entretanto apezar do pequeno numero, e da desigualdade das armas, avançavão com tal intrepidez, e poderão sustentar-se tanto, que começando o attaque ás duas horas da noite houve fogo até dia claro. Doze pretos tiverão a audacia de attacar o Quartel de Cavallaria pelas 8 horas da manhã e morrerão brigando sem retirar hum só. Em resultado tivemos perto de pessoas entre mortos e feridos, e uns 100 pretos metade mortos, e a outra prezos, entre os quaes poucos feridos. Não he possivel descrever o encarniçamento que attacava a canalha; so quem como eu presenciou os factos póde fazer idéa do que teria havido, já não digo se elles conseguissem realizar o plano de insurreição, porém somente se tivessem armas iguaes, ou se em vez de attacar as Guardas, attacassem as cazas dos particulares.
Avalia agora por aqui o risco que corremos com semelhante gente, e o que ainda poderemos soffrer um dia, se não tivermos sempre a mais rigorosa cautela. A Cidade tem-se conservado em alarma até agora, não que rasoavelmente se deva esperar alguma cousa por ora; porém o povo naturalmente espantadiço nestas crizes, assusta-se a cada momento de qualquer cousa, e põe tudo em confuzão. Ainda agora (8 horas da noite) escrevendo esta carta fui interrompido, pelo povo que amotinou-se a ponto de atirarem às vedetas, de que resultou o ferimento de hum soldado.
Bahia 27 de Janeiro de 1835”.
Glossário
Permanentes: complexo das tropas de todas as armas, sempre reunido e pronto para em cada ocasião intentar uma agressão ou sustentar a defesa, enquanto outras forças se não juntam.
AULETE, Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. Lisboa [Portugal]: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, Disponível em: http://www.auletedigital.com.br/
Sobre este documento
Publicado no Pão de D’Assucar, Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1835. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/