“1661: a ‘peste de bexigas’
(…) o início da epidemia se dera na casa de uma moradora no Pará, que teve um filho morto pela doença. Como se tratava de ‘bexigas contagiosas – segundo o padre – se foram espalhando pela cidade e capitanias, com tanto estrago dos índios que acabou a maior parte deles, morrendo também alguns filhos da terra, que tinham alguma mistura’.
A epidemia foi uma excelente oportunidade para o padre Bettendorf ressaltar os malefícios causados pela sacrílega expulsão dos religiosos, pouco tempo antes. Tanto é que, segundo ele, os próprios moradores chamavam de volta os padres, banidos das aldeias indígenas, para administrar os sacramentos e cuidar dos índios. Não havia dúvida de que, com a ‘peste de bexigas’, Deus teria castigado ‘todo o Estado, depois dos povos se terem levantado contra os padres missionários da Companhia de Jesus’.
O religioso luxemburguês não era o único a atribuir um sentido maior às bexigas que castigaram o Maranhão dos anos 1660. Um manuscrito anônimo (certamente jesuíta) sobre o motim de 1661 referia-se à epidemia como o ‘rigoroso golpe da espada da Divina Justiça’. Assim, numa descrição próxima à das pragas bíblicas, narrava o texto: ‘se corrompeu o ar de tal sorte, que com uma peste veemente de bexigas vai consumindo tudo’.
Os padres da Companhia de Jesus atribuíam o surto de bexigas à expulsão que haviam sofrido, mas há vários outros registros que dão conta da seriedade da irrupção da doença no Maranhão e Pará. Frei Pedro das Neves, religioso franciscano, por exemplo, escrevia aos seus superiores sobre as diversas dificuldades que enfrentavam os frades no Maranhão.
Advertia ele que a tudo se somara a ‘grande mortandade que as bexigas fizeram no gentio, que é o remédio destas terras’. Não somente as casas dos moradores haviam ficado ‘sem um escravo’, mas também as aldeias de índios livres iam ficando desabitadas. Entre os próprios religiosos também havia perdas: ‘com nós temos muito poucos’ – morreram 48 e mais iam morrendo a cada dia.
Pouco tempo depois, eram os oficiais da Câmara de São Luís que se queixavam ao rei da falta de escravos e trabalhadores, ‘pelo mal de bexigas, que em todo o Estado houve’, e que era, explicavam, a ‘peste entre estes gentios’. Lamentavam-se os oficiais que a doença tinha levado quase ‘todos os livres das aldeias avassaladas a V.M.’, bem como os escravos dos moradores. O ouvidor Maurício de Heriarte relatava igualmente a desolação causada pela doença. Segundo ele, na ilha de São Luís havia inicialmente 18 ‘aldeias grandes de índios’ de diversas nações; com as bexigas, “se consumiram e ficaram três’.”
Sobre este documento
Rafael Chambouleyron et al. “Formidável contágio”: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.4, out-dez. 2011, p.987-1004.
In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702011000400002&lng=en&nrm=iso
Rafael Chambouleyron