“‘A Ordem’ é o título do primeiro capítulo do manual de economia doméstica de Vera Cleser, O Lar Doméstico: Conselhos Praticos sobre a Boa Direcção de uma Casa, editado em 1898 e reeditado em 1912. (…) Nele, a prática contínua de fixação dos objetos na casa é comparada às leis imutáveis do universo. No entanto, a autora reconhece territórios de exceção: ‘Os homens não apreciam muito a arrumação na sua mesa de trabalho, e com razão; a criada, a quem quasi todas as casas está entregue à limpeza dos commodos, não tem ideias das dificuldades que podem advir da troca de livros e papeis…’.
Situada no escritório da casa, a mesa de trabalho masculina obedece a outra lógica, imune à ordenação doméstica. Aquilo que perante os olhos ingênuos da mulher aparece como desordem guarda, na verdade, uma outra ordem, desconhecida para as mãos femininas que desastradamente podem trocar livros e papeis. (…)
Julgados isoladamente, os objetos masculinos dentro de uma casa seriam poucos, se comparados ao arsenal que passa a compor cada um de seus cômodos. Essa rarefação da marca masculina na casa levou muitos a entendê-la como reino do feminino. (…)
É preciso que se diga ainda que as atribuições de gênero aos objetos funcionam como sentidos imanentes. Tais objetos se tornam emblematicamente sexualizados. Tal imanência, no entanto, deve ser entendida como resultado da prática social, cotidianamente reiterada pela prática social, momento em que se atribui o gênero aos objetos.
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Formas de organização que sigam critérios racionais, mesmo que seja a simples classificação alfabética estão associados à figura masculina. (…)
A ordem masculina é eficaz e nos remete imediatamente ao universo fora de casa, aquele do trabalho.
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Um dos temas recorrentes da iconografia masculina do período, tanto impressa como particular, são os escritórios domésticos, desde os mais ricos (…) até os intimistas e modestos (…). Sentados, mãos sob o queixo em posição de leitura prolongada, escrevendo ou manipulando livros e papeis, vemos nas imagens as autênticas “mesas de trabalho” mencionadas por Vera Cleser, onde a desordem, apenas aparente e circunstancial, significa algo extremamente positivo e respeitável – o momento de reflexão, de criação, de estudo. São imagens do trabalho intelectual, atribuição masculina revestida do mais alto prestígio. As mesas de trabalho localizadas no escritório, de madeira escura e maciça, com tampos horizontais muito amplos (…), herdaram a imponência das mesas inglesas das bibliotecas eclesiásticas e universitárias do final do século XVIII, cuja grande extensão servia para acomodar livros feitos na mesma proporção.”
Sobre este documento
Vania Carneiro de Carvalho. Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008, pp. 43-8.
Vania Carneiro de Carvalho.