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Azevedinho e seus problemas
Artigo de revista

“(…)

As instruções de Azevedinho aos agentes da firma – mandados para o Rio Benin com a missão de montar uma ‘feitoria’ que serviria de posto para adquirir e manter os cativos até que pudessem ser levados para Pernambuco – assemelham-se a um manual de gestão empresarial. Os funcionários mais graduados eram orientados a exercer sua autoridade sobre os subalternos sem impor um ‘estilo imperial’, buscando um ‘sentimento unânime e compreensão’ para alcançar a ‘mais perfeita união’.

Só que as mercadorias eram pessoas. Ali, no Rio Benin, começara o comércio atlântico de cativos no século XVI. As elites africanas, portanto, conheciam bem os negociantes e sabiam o quanto valiam os cativos. Azevedinho entendia isso, tanto que instruiu seus agentes a prestar atenção nos hábitos do lugar para se conduzirem adequadamente diante da nobreza local. Deveriam se comportar dignamente e com moderação, evitando licenciosidades e deboches, sem jamais se ‘intoxicarem’. (…) Também era aconselhável que os empregados jamais tivessem qualquer problema com o rei do Benin, suserano de outros reinos menores da região, como Oery e Gotto.

Uma estratégia de propaganda era expor em abundância as mercadorias a serem trocadas por escravos, sempre com cuidado para que os armazéns da companhia não fossem roubados. Havia guardas vigiando os depósitos, mas a conduta deles também precisava ser observada. Seguindo os hábitos locais de negociação, ofereciam-se presentes generosos à nobreza africana, buscando assim convencê-la de que a empresa era o melhor comprador de sua mercadoria humana.

Além de dispor de barcos e canoas para navegação rio adentro, armazéns e outras edificações, os empregados da feitoria tinham que construir mastros com gáveas na praia que lhes permitissem sinalizar para os navios da firma por meio de um código secreto de bandeiras. Quando a carga humana estivesse pronta, o embarque e a saída do barco deveriam ser imediatos, para despistar a Marinha inglesa. Sintonizado com a melhor tecnologia da época, Azevedinho indicava que os britânicos tinham montado um telégrafo perto dali. Instruiu seus agentes a encontrá-lo e visitá-lo frequentemente, tentando monitorar as comunicações dos ingleses, ousadia que explica o sucesso de sua empreitada por pelo menos oito anos. Providenciou também documentos falsos para uso da tripulação no desembarque em Pernambuco.

Azevedinho descia aos detalhes. Indicava os instrumentos necessários aos navios negreiros, como correntes e algemas, e mandava que cultivassem alimentos para o consumo durante as viagens (…)

A principal operação da empresa exigia muitos cuidados. Afinal, o lucro dependia das boas escolhas na hora de comprar escravos. Era fundamental não comprar gente velha rejeitada nos mercados locais. Seguindo o que pensava ser o “gosto do país”, Azevedinho enfatizava a preferência pela compra de homens de 12 a 20 anos de idade. (…)

As detalhadas instruções do chefe nem sempre eram cumpridas à risca. O capitão de um dos negreiros da empresa bebia tanto que chegou a ficar conhecido como moxaquori, ou seja, um bêbado, na língua local. Como se fosse pouco (…) vendeu produtos a crédito e gastou muito além do que devia, chegando mesmo a passar notas promissórias para a nobreza africana, obrigando a feitoria a honrá-las para não cair em descrédito. Para completar, o capitão ainda desrespeitou as elites locais, atrapalhando os negócios. (…)

Não paravam aí os problemas da feitoria. Praticamente todos adoeceram, com maior ou menor gravidade. A correspondência (…) indica ainda que havia custos não previstos, como provisões, viagens ao interior, propinas para os agentes da nobreza africana e salários dos vários funcionários brancos e negros, entre carpinteiros, canoeiros, calafates, tanoeiros, guardas e marinheiros. O ambiente era violento, prestes a explodir, como seria de esperar em uma feitoria para traficar gente. As negociações exigiam códigos de etiqueta complexos. Parece que dois agentes não entenderam bem esse detalhe e, desobedecendo às precisas instruções de Azevedinho quanto aos presentes, foram visitar o rei de Oery de mãos abanando. Uma ofensa grave. Tão grave que um deles ficou preso até que o outro conseguisse remediar o erro cometido justamente com aquele que talvez fosse o nobre mais importante da região depois do próprio rei do Benin. Levaram dias para resolver o problema, e, enquanto isso, não podiam comprar escravos, pois ninguém negociava nada até que a cúpula da nobreza autorizasse.

(…)”

Gáveas: espécie de gaiola, tabuleiro ou guarita assente em uma rada de tábuas no alto dos mastros.

Calafates: pessoa que é responsável por vedar com estopa, introduzida à força, as junturas, buracos ou fendas de uma embarcação, e embebendo-a de pez, alcatrão, etc. para impedir a entrada da água.

Tanoeiros: pessoa que faz tonéis, pipas, barris e vasilhas semelhantes.

AULETE, Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. Lisboa [Portugal]: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, Disponível em: http://www.auletedigital.com.br/

Sobre este documento

Título
Azevedinho e seus problemas
Tipo de documento
Artigo de revista
Origem

Marcus J. M. de Carvalho. “Azevedinho e seus Problemas”. Revista de História da Biblioteca Nacional, 1/12/2012. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/azevedinho-e-seus-problemas

Créditos

Marcus J. M. de Carvalho.