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Visão do jogo
Texto acadêmico

“Mas e Charles Miller, o ‘pai do futebol brasileiro’? Onde entra nessa história, se o esporte já era jogado por aqui desde a primeira metade da década de 1880? Afinal, é para este brasileiro de nome inglês que o nosso senso comum aponta quando o assunto é a introdução do futebol no país.

Charles Miller nasceu em São Paulo, no dia 24 de novembro de 1874, filho do engenheiro escocês John Miller e de Carlota Fox. Durante boa parte de sua vida, no entanto, morou e foi educado na Inglaterra. Conheceu o futebol no colégio, jogando pelo Banister Court School, depois pelo Corinthian Football Club, pelo St. Mary’s Football Club (atual Southampton Football Club) e pela seleção do condado de Hampshire. Era um atacante rápido, excelente driblador e dono de um chute forte e preciso, qualidades que o destacavam mesmo na Inglaterra, onde o futebol já amadurecera e conquistara um número expressivo de adeptos.

Em 1894, retornando ao Brasil, Miller trouxe na mala alguns itens de sua adoração: um livro de regras do association football, uma camisa do Banister School e outra do St. Mary, duas bolas, uma bomba para enchê-las e um par de chuteiras. (…) Como todo bom oldboy das escolas inglesas, Miller chamou para si a responsabilidade de promover a prática do esporte entre a fina-flor da juventude paulistana. (…)

Várias hipóteses podem explicar a origem do mito segundo o qual Miller seria, além de grande craque e divulgador pioneiro, o ‘pai’ do futebol entre nós. A primeira diz respeito à inserção dos jogos entre os clubes de elite nos jornais paulistas. Obviamente, enquanto foi uma atividade recreativa restrita a colégios, o futebol não mereceu qualquer atenção da imprensa. Além disso, deve-se ter em conta a força cultural desses grupos socialmente dominantes, contumazes inventores de tradições, bem como o fato de os primeiros arquivos sistematizados serem provenientes dos clubes e das ligas que os reuniam (…). Tudo isto, porém, não pode criar uma muralha documental que encubra o fato de que o futebol já era praticado, embora com outro espírito e menor organização, pelos membros das elites nos colégios brasileiros, e que muitos de seus ex-alunos também contribuíram para a difusão do esporte. (…)
Mas é difícil derrubar um mito depois que ele é erguido.

(…)

O jornalista Thomaz Mazzoni, foi, talvez, o único a descrever vários jogos no Brasil antes do retorno de Charles Miller, em 1894. Fez, inclusive, referência ao futebol no Colégio São Luís de Itu, com base no relato de ex-alunos. No jornal A Gazeta e também no A Gazeta Esportiva, sempre iniciava suas matérias sobre o assunto descrevendo algum episódio anterior à chegada de Miller. Conhecia não só a história do futebol nos colégios, como também várias outras possíveis fontes dessa paixão nacional. Sabia que funcionários escoceses e brasileiros da São Paulo Railway, na linha Jundiaí-São Paulo, praticavam o futebol, o mesmo acontecendo com os ferroviários das oficinas da Companhia Paulista, já por volta de 1892, e dispunha de inúmeros relatos de jogos de futebol entre marinheiros estrangeiros em praias brasileiras, quando da passagem de seus navios nos portos do país. Apesar disso tudo, jamais arriscou um artigo mais contundente sobre a questão da gênese do esporte no Brasil, preferindo, ao final de seus textos, resignar-se à versão imposta pela primeira classe dirigente do futebol paulistano. Terminava sempre por corroborar a teses de que Miller foi o ‘pai’ do futebol brasileiro. Essa atitude ambígua foi a tônica de sua abordagem do assunto.

Como resposta às dúvidas subliminarmente colocadas por Mazzoni, o também jornalista esportivo Adriano Neiva publicou, durante os anos 50, vários artigos defendendo a ‘tese Miller’. Num deles, enfatiza o modelo inglês como padrão cultural e esportivo no Brasil: ‘Esse fato da fundação do futebol já foi exaustivamente pesquisado e provado. Antes de Charles Miller havia bolas, mas não existia futebol. Como poderá haver mar sem haver natação e touro sem haver tourada?’ (…)

Para contradizê-lo, porém, basta recorrer às fontes primárias atualmente disponíveis em Itu, Itaici, São Paulo e Rio de Janeiro. (…) Além da pesquisas nas instituições de ensino da época, a memória dos ferroviários também são fontes riquíssimas e muito pouco exploradas, bem como os relatórios de linha, que contêm informações sobre a prática do futebol por ferroviários escoceses, ingleses e brasileiros, na última década do século XIX.”

Association football: sinônimo de “futebol”, foi um termo usado com frequência nas últimas décadas do século XIX e nas iniciais do XX.

Oldboy: substantivo do inglês britânico: homem que foi estudante numa escola particular ou universidade.

Relatórios de linha: O Relatório de Linha era um procedimento requisitado pelas companhias ferroviárias com o objetivo de controlar a qualidade dos serviços com o fim de evitar acidentes ao longo das estradas de ferro. Existiam relatórios de circulação, de trem e de linha, cada qual atribuído ao pessoal de cada setor. Fichas impressas eram fornecidas pelas próprias empresas aos trabalhadores, que deveriam entregar após a execução das tarefas. O feitor de linha tinha a função de preencher o impresso, pois ele era encarregado de gerenciar o pessoal da manutenção da linha, também chamado de pessoal da soca, que exercia um trabalho muito penoso, como troca de trilhos e dormentes. O Relatório de Linha registrava as condições dos trilhos do ponto de verificação inicial ao final, se houve trocas de dormentes e trilhos, estacas e sobre as condições das sinalizações nas passagens de nível e cruzamentos. Os relatórios também serviam para assegurar a efetiva execução do processo de trabalho.

Sobre este documento

Título
Visão do jogo
Tipo de documento
Texto acadêmico
Palavras-chave
Revoltas populares Sedição de Juazeiro Guerra do Contestado
Origem

José Moraes dos Santos Neto – Visão do jogo. Primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac &Naify, 2002. pp.27-37

Créditos

José Moraes dos Santos Neto.