“Meu pai me ensinou a andar a cavalo.
Meu pai me ensinou a nadar.
Me incentivou a ser moleque de rua.
Me ensinou a guiar avião (tinha um na firma dele e, depois de decolar, eu pegava no manche e ia mirando até São Paulo).
Mas meu pai não pôde me ensinar mais.
No dia 20 de janeiro de 1971 era feriado no Rio, por isso dormi até mais tarde. De manhã, quando todos se preparavam pra ir à praia (e eu dormindo), a casa foi invadida por seis militares à paisana, armados com metralhadoras. Enquanto minhas irmãs e as empregadas estavam sob mira, um deles, que parecia ser o chefe, deu uma ordem de prisão: meu pai deveria comparecer na Aeronáutica para prestar depoimento. Ordem escrita?
Nenhuma. Motivo? Só deus sabe.
Quando acordei e vi aqueles homens perguntei pra minha mãe o que era. Ela não respondeu e disse que papai tinha saído. Desci, tomei café e vi as armas na sala. Não entendi nada e fui jogar bola na praia. Quando voltei, estavam todos assustados.
– Onde você andou? – me perguntou um sujeito.
– Fui jogar bola.
– Mas não pode.
Não tinha sacado, mas éramos prisioneiros. O telefone fora do gancho, ninguém saía. O namorado da minha irmã chegou e foi preso, levado embora. Um amigo de dezesseis anos chegou e também foi levado.
Minha mãe chamou-me num quarto e me mandou entregar uma caixa de fósforos pra Helena, que mora perto, mas fazendo o possível pra não ser visto por ninguém. Fui pro banheiro da empregada, subi no telhado, pulei o muro da vizinha, corri pra rua e voei pra casa da Helena com a caixa apertada na mão. Chegando lá, hesitei em tocar a campainha. Abri a caixinha e vi um papelzinho dobrado:
O RUBENS FOI PRESO, NINGUÉM PODE
VIR AQUI, SENÃO É PRESO TAMBÉM.
Minhas pernas tremeram. Que loucura, preso, mas por quê? Toquei a campainha, entreguei o bilhete e voltei pra casa preocupado.
Tivemos que conviver o dia todo com os caras jogando baralho, botão, vendo novela. À noite, mudou o plantão. Jantar, cafezinhos e, com mais intimidade, minha mãe pediu pra guardarem as metralhadoras num canto da sala.
Minha mãe me acorda no dia seguinte e se despede de mim. Ela também tinha que ir, junto com a Eliana (minha irmã de quinze anos). Os caras saíram, trancaram a porta, colocaram minha mãe e irmã no banco traseiro de um fusca azul. E agora? Que fazer? Eu, Nalu (treze anos), Big (nove anos) e duas empregadas, trancados. Ligamos pra minha avó, que morava em Santos e esperamos seis horas até ela chegar, encolhidos num canto morrendo de medo.
À noite, a casa estava cheia e ficou decidido que eu deveria deixar o Rio. No dia seguinte, um cara que nunca tinha visto na vida me levou prum sítio em Petrópolis. Não sabia de quem era o lugar, mas devia ser alguém bem rico, pois tinha piscina e até quadra de tênis. Fiquei aos cuidados de um casal simpático (irmão do Bocaiúva) e do filho deles. Minha irmã ficou só um dia presa, mas meu pai e minha mãe…
Não tinha muito o que fazer. Tomar banho de piscina, tentar aprender a jogar tênis (não via a menor graça nesse esporte) e ficar dando tiro com espingardinha de chumbo. À noite, rezava pra que deus soltasse meus pais e ia dormir tranqüilo, pois sabia que nada de grave ia acontecer, afinal “cadeia é coisa pra bandido” (pelo menos deveria ser).
Duas semanas depois, toca o telefone. Minha mãe estava solta. Alívio. Meu pai ainda não. Voltei imediatamente pro Rio e encontrei minha mãe exausta, deitada na sua cama. Tava irreconhecível, muito mais magra. Nos abraçamos e choramos. Tive o pior ataque de asma da minha vida. Ela tinha estado no quartel da Barão de Mesquita, Polícia do Exército, treze dias numa cela individual. Foi interrogada várias vezes, sempre com as mesmas perguntas: idéias políticas do meu pai e quem freqüentava a nossa casa. Entre os interrogatórios, era obrigada a ver coleções de fotos e exigiam que as reconhecesse. Mas ela só identificou a do meu pai e da família.
Naquela época, a censura da imprensa não estava tão rigorosa e todos os dias saíam artigos nos jornais:
ONDE ESTÁ RUBENS PAIVA?
O Governo dizia que ele não se encontrava preso.
MAS COMO NÃO ESTAVA PRESO, SE SUA
MULHER VIU A FOTOGRAFIA DELE
NO ÁLBUM DA PRISÃO?
A resposta era cínica e covarde:
A MULHER DE RUBENS PAIVA NUNCA
ESTEVE PRESA, NEM SUA FILHA.
Mas eles cometeram uma gafe. Meu pai, quando preso, foi guiando o próprio carro, que ficou estacionado no quartel da Barão de Mesquita. Mais tarde, uma tia minha foi recolher o carro, e os caras deram um recibo com o timbre do Exército.
MAS SE RUBENS PAIVA NÃO ESTAVA PRESO,
O QUE SEU CARRO ESTAVA FAZENDO ALI?
Houve um silêncio. Com esse documento foram impetrados três pedidos de habeas-corpus, mas nada aconteceu. Minha mãe chegou a ir um dia à PE ver se conseguia alguma notícia. Ficou de pé horas, esperando fora do portão, até que um policial comovido disse: “Não adianta, Dona Eunice. Os homens não vão devolver o que a senhora quer. Não adianta ficar aqui”. No Congresso Nacional havia debates agitados. De um lado, Pedro Horta; do outro, o líder da maioria Eurico Resende.
No dia 20 de fevereiro, o Ministro da Justiça Alfredo Buzaid disse pra minha mãe que meu pai tinha sofrido “alguns arranhões”, mas que voltaria em breve para casa. As reuniões do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana passaram a ser secretas, depois do caso. Mesmo sob censura, a imprensa pegava no pé. Finalmente, no dia 24 de fevereiro, sai no Diário Oficial da União o que até hoje é a versão do Exército:
“SEGUNDO INFORMAÇÕES DE QUE DISPÕE ESTE COMANDO, O CITADO PACIENTE, QUANDO ERA CONDUZIDO PARA SER INQUIRIDO SOBRE FATOS QUE DENUNCIAM ATIVIDADE SUBVERSIVA, TEVE SEU VEÍCULO INTERCEPTADO POR ELEMENTOS DESCONHECIDOS, POSSIVELMENTE TERRORISTAS, EMPREENDENDO FUGA PARA LOCAL IGNORADO…”
Em outras palavras, ele tinha fugido. Foi a versão mais idiota que já inventaram, mas o que fazer? Logo depois veio a censura da imprensa sobre o caso, foi julgado um habeas-corpus numa sessão secreta do Superior Tribunal Militar (obviamente negado), sessão essa a que minha mãe esteve presente, sozinha (só com a ajuda do Tio Rafael). Não havia provas. O jeito foi esperar.
Continuamos morando no Rio e começaram a chegar as informações mais terríveis: ele tinha sido torturado e morrera. “Mas como? Não existe tortura no Brasil…”
Doce ilusão, estava-se torturando gente como nunca e havia-se criado uma tática mais eficiente: mata-se o inimigo, depois some-se com o corpo.
Inimigo. Mas o que fez Rubens Paiva? Em 1978, o Jornal do Brasil lançou um caderno especial intitulado Quem matou Rubens Paiva ? , onde dois repórteres, Fritz Utzeri e Heraldo Dias, faziam um completo levantamento do caso, sete anos depois.
O motivo da prisão parece ter sido uma carta enviada por alguns amigos exilados no Chile. Uma amiga da família, Cecília Viveiros de Castro, depois de visitar o filho no Chile, foi detida no aeroporto, onde os agentes de segurança descobriram as cartas. Dali ela foi levada para a 3ª Zona Aérea (para onde, no dia seguinte, levaram meu pai), comandada pelo Brigadeiro João Paulo Burnier.
Segundo versão de Dona Cecília, ela, outra mulher e meu pai permaneceram de pé muito tempo, com os braços pra cima, num recinto fechado. Com a longa duração do castigo, Dona Cecília fraquejou, sendo amparada por meu pai, que estava ao lado dela. A atitude dele irritou o chefe do interrogatório, descrito como “um oficial loiro, de olhos azuis”, que atacou meu pai e começou a surrá-lo.
– Vocês vão matá-lo! – gritou uma das mulheres.
Isto fez com que este oficial ficasse completamente fora de si e, agarrando a mulher pelos cabelos, forçou-a a aproximar-se do meu pai, já estirado no chão.
– Aqui não se tortura, isto é uma guerra – gritou o oficial.
Essa mulher ainda ouviu a voz do meu pai, já no quartel da Barão de Mesquita, no dia 21 de janeiro, mas depois foi solta. É a única testemunha do caso, professora das minhas irmãs, porém nunca contou a história seja pra nós, seja pros jornalistas. Essa versão foi contada por alto, pelo marido dela.
Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não. Lembro-me até que, um dia, já morando em Santos, pensei ter ouvido minha irmã gritar “papai”. Saí correndo feito um louco, rodei pela casa toda, fui pra rua, procurei por todos os cantos, mas não o achei. Ainda com uma tremedeira no corpo fui perguntar pra minha irmã. Era engano meu. Ninguém tinha gritado. Sonhei centenas de vezes com meu pai chegando um dia. Mas foram sonhos. Quando viemos morar em São Paulo, três anos depois, já estava conformado com o fato de que realmente eu era órfão.
Depois da anistia ficou-se sabendo das barbaridades cometidas nos porões dos quartéis. Até soube que um repórter, que estava próximo do ex-Presidente Médici no aeroporto de Recife, ouviu alguém dizer que Rubens Paiva fora morto. Segundo o repórter, nosso, ex-Presidente riu e falou pro senador Vitorino Freire:
– Acidente de trabalho.
Rubens Paiva não foi o único “desaparecido”. Há centenas de famílias na mesma situação: filhos que não sabem se são órfãos, mulheres que não sabem se são viúvas. Provavelmente, o homem que me ensinou a nadar está enterrado como indigente em algum cemitério do Rio. O que posso fazer? Justiça neste país é uma palavra sem muita importância. As pessoas de farda ainda são os donos do Brasil, e eles têm um código de ética para se protegerem mutuamente (como no caso do Riocentro).
Vou usar um velho chavão, mas é verdade que não é matando um corpo que se elimina um homem. Rubens Paiva está vivo em muitas pessoas. Um homem querido, respeitado. Um homem que não temeu nada. O contrário de quem o matou. Imagine as noites da pessoa que um dia colocou um senhor de quarenta anos e pai de cinco crianças num pau-de-arara, dando uma descarga elétrica naquele corpo…
Chegará o dia de quem desapareceu com Rubens Paiva, assim como chegará o dia dos que desapareceram com vinte mil na Argentina, porque esses desaparecimentos têm o mesmo significado. O sadismo de alguns imbecis que apenas por vestirem fardas e usarem armas se acham no direito divino de tirar a vida de uma pessoa, pelo ideal egoísta de se manter no poder.
MATARAM RUBENS PAIVA
JESUS CRISTO
CHE GUEVARA
HERZOG
SANTO DIAS
20 MIL NA ARGENTINA
30 MIL EM EL SALVADOR
MATARAM E DECEPARAM VICTOR JARA
Mas nunca vão matar aquela esperança que a gente tem de um mundo melhor, que eu não sei direito como vai ser, mas tenho certeza de que gente tipo “o oficial loiro, de olhos azuis”, tipo Brigadeiro Burnier e tipo Médici não vai ter(…)”
Sobre este documento
Marcelo Rubens Paiva. Feliz Ano Velho. São Paulo: Círculo do Livro,1982, pp. 40-45.
Marcelo Rubens Paiva