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Tratado Descritivo do Brasil
Trecho de livro

Capítulo XX

Que trata da grandeza do Rio de S. Francisco e seu nascimento

(…)

Está o Rio de S. Francisco em altura de dez graus e um quarto, que tem na boca da barra 02 léguas de largura, por onde entra a maré salgada para cima 02 léguas somente, e dali para cima é água doce, que a maré faz recuar outras 02 léguas (…). O gentio chama a esse rio “o Pará”, o qual é muito nomeado entre todas as nações, das quais foi sempre muito povoado, e tiveram umas com outras [nações] sobre os sítios grandes guerras, por ser a terra muito fértil pelas suas ribeiras, e por acharem nelas grandes pescarias.

Ao longo deste rio vivem agora alguns Caités, de uma banda, e, da outra, vivem Tupinambás; mais acima vivem os Tapuias de diferentes castas, Tupinaês, Amoipiras, Ubirájáras e Amazonas; e além delas, vive outro gentio (não tratando dos que se comunicam com os portugueses), que se atavia com jóias de ouro (…) Este gentio se afirma viver à vista da Alagoa Grande, tão afamada e desejada de descobrir, da qual este rio nasce. (…)

(…) Navega-se este rio com caravelões até a cachoeira, que dista da barra 20 léguas, pouco mais ou menos, até onde tem muitas ilhas, que o fazem espraiar muito mais que na barra, por onde entram navios de cinquenta toneis pelo canal do sudoeste, que é mais fundo que o do nordeste. Da barra deste rio até à primeira cachoeira há mais de 300 ilhas; no inverno não traz este rio água do monte, como os outros, nem corre muito; e no verão cresce de dez até quinze palmos. E começa a vir esta água do monte, de Outubro por diante até Janeiro, que é a força do verão nestas partes; e neste tempo se alagam a maior parte destas ilhas, pelo que não criam nenhum arvoredo nem mais que canas bravas de que se fazem flechas.

Por cima desta cachoeira, que é de pedra viva, também se pode navegar este rio em barcos (…) até o sumidouro, que pode estar da cachoeira 80 ou 90 léguas, por onde também tem muitas ilhas. Este sumidouro se estende no lugar, onde este rio sai de debaixo da terra, por onde vem escondido 10 ou 12 léguas, no cabo das quais arrebenta até onde se pode navegar, e faz seu caminho até o mar. Por cima deste sumidouro está a terra cheia de mato, sem se sentir que vai o rio por baixo, e deste sumidouro para cima se pode também navegar em barcos (…): os índios se servem por ele em canoas feitas para isso. Está apto este rio para, perto da barra, abrigar de uma banda uma povoação valente; e de outra banda, para segurança dos navios da costa, podem os moradores, que nele vivem, fazer grandes fazendas e engenhos até a cachoeira, em derredor da qual há muito pau-brasil, que com pouco trabalho se pode carregar.

(…) trabalhou-se muito para se descobrir este rio, por todo o gentio que nele viveu, e por ele andou-se a afirmar que pelo seu sertão havia serras de ouro e prata; à conta da qual informação se fizeram muitas entradas de todas as capitanias sem poder ninguém chegar ao cabo; com este desengano e sobre esta pretensão, veio por duas vezes Duarte Coelho a Portugal, a partir da sua capitania de Pernambuco, trazendo da segunda vez um desenho do rio, mas desconcertou-se com S. A. por não receber as honras que pedia. E sendo governador deste Estado Luiz de Brito de Almeida mandou entrar por este rio acima a um Bastião Alvares, que se dizia do Porto Seguro, o qual trabalhou por descobrir quanto pode, no que gastou quatro anos e um grande pedaço da Fazenda d’El-Rei, sem poder chegar ao sumidouro, e por derradeiro veio acabar com quinze ou vinte homens entre o gentio Tupinambá, em cujas mãos foram mortos; o que lhe aconteceu por não ter cabedal de gente para se fazer temer, e por querer fazer esta jornada contra água; o que não aconteceu a João Coelho de Sousa, porque chegou acima do sumidouro mais de 100 léguas, como se verá do roteiro que se fez da sua jornada. (…).”

Barra: entrada de baía; embocadura.

Caravelões: antiga embarcação, mais grosseira que a caravela.

Tonel: vasilha própria para líquidos, igual a duas pipas e correspondente a 840 litros.

Atavia: ornar, adornar; aformosear, enfeitar.

S. A.: Sua Alteza = título honorífico, tratamento dado antigamente aos reis de Portugal e também aos príncipes e infantes de Portugal e Brasil: Sua Alteza Real. Sua Alteza Imperial.

Sobre este documento

Título
Tratado Descritivo do Brasil
Tipo de documento
Trecho de livro
Palavras-chave
Legislação História das Mulheres Esportes
Origem

Gabriel Soares de Souza. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Rio de janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1879, pp. 29-32. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/node/495

Créditos

Gabriel Soares de Souza.