]7ª ONHB – Olimpíada Nacional em História do Brasil

Um sepulcro grande, amplo e fundo
Texto Acadêmico

“A crônica colonial e os diários de viajantes que estiveram no Brasil e em outras partes da América e do mundo entre os séculos XVI e XIX foram e continuam a ser utilizados sistematicamente como fontes para a construção do conhecimento histórico relativo às mais diversas temáticas. De fato, tais textos prestam-se a inúmeras leituras e possibilidades de reflexão. (…) Há, todavia, uma possibilidade quase inexplorada encerrada nessas fontes e sobre a qual a historiografia pouco tem se detido. [Muitos] autores atravessaram o oceano como parte inescapável de sua experiência, mas as narrativas produzidas por eles acerca do deslocamento marítimo não mereceram a mesma atenção que as descrições da vida e dos costumes em terra firme americana. Adentrar o universo das relações e da vida material construídas a bordo a partir desses textos é um caminho possível para avançar na concepção do ‘Atlântico como espaço histórico’.(…)

Retomo textos da crônica colonial e diários de viajantes com o objetivo de destacar um aspecto da vida e do trabalho no mar. (…) Refiro-me à preservação da saúde, sobretudo frente à dificuldade de abastecer as embarcações com provisões alimentares adequadas e capazes de resistir ao tempo longo e aos climas antagônicos das viagens inter-hemisféricas. (…) Boas e fartas provisões na partida não significavam que a saúde dos homens do mar estivesse garantida ao longo de toda a viagem. Doenças nutricionais, como a disenteria e, sobretudo, o escorbuto, fizeram verdadeiras razias nas equipagens ao longo dos séculos, até que os doutores europeus se dessem conta de que a causa deste último mal era uma carência alimentar – de vitamina C, no caso. Mas a própria existência das vitaminas e de suas propriedades só viria a ser descoberta nos primeiros anos do século XX. Evidentemente, não pretendo soar anacrônico. Vou recorrer, logo adiante, a relatos de experiências de homens não eruditos sobre o consumo de frutas cítricas como modo de prevenir o escorbuto, embora tais homens desconhecessem igualmente as vitaminas e suas virtudes. Saberes curativos, afinal, também se manifestam fora dos tratados e ambientes médicos. (…)

Escalas de abastecimento para prevenção ou cura de doenças como o escorbuto acabaram se tornando uma necessidade nas viagens transoceânicas. Os relatos sobre isso são inúmeros e iniciam-se no Quinhentos, com ênfase na novidade representada pelos vegetais desconhecidos dos europeus naquele período. Pigafetta foi um dos que mencionaram os abacaxis de que se valeram abundantemente os navegadores – no caso dele, no litoral de Pernambuco em 1520. (…)

A questão do escorbuto entre os homens do mar, particularmente no tráfico de africanos, já foi [descrita] em 1498 com Vasco da Gama, em 1500 na esquadra cabralina, em 1536 na expedição de Jacques Cartier em busca da tão almejada passagem noroeste, em 1593 pela pena de Richard Hawkins, em 1599 pelo relato de Oliver van Noort, apenas para ficar em alguns exemplos mais antigos [mostrando] a discrepância entre os conhecimentos empíricos dos marinheiros e o dos oficiais marítimos e doutores médicos, estes últimos relutantes em aceitar essa experiência como base para a construção de conhecimentos. Certos capitães ingleses do tráfico de escravos entre a África e o Caribe encaravam como sobrenatural a recuperação dos doentes de escorbuto pelo consumo de frutas cítricas. Richard Sheridan alude alguns desses capitães, que se recusavam a fazer uma parada de refresco na Jamaica a fim de garantir a sobrevivência de um lote de africanos escorbúticos. Na opinião deles, os cirurgiões que exigiam esse refresco revigorante tinham maquinações com o demônio, o que explicava a cura (…)

A prevenção do escorbuto não era questão de medicamento, mas, sim, de alimentação adequada. Frente à hierarquia que se manifestava, dentre outras coisas, nas diferenças alimentares da mesa dos oficiais em comparação com a dos marinheiros ou soldados comuns, não era surpreendente que os últimos fossem mais acometidos pelo escorbuto do que os primeiros. (…) Sinal disso é a profusão de mortos por escorbuto contida no relato do soldado Ambrósio Richshoffer, que partiu para Amsterdã em fins de 1628 a fim de tomar parte na expedição da Companhia das Índias Ocidentais que atacaria Pernambuco. O soldado mencionou a decisão dos capitães da frota em parar nas Canárias em 6 de agosto de 1629, “por se acharem nos navios muitos tripulantes doentes e atacados de escorbuto, que é uma moléstia maligna da qual morreram muitos.” Meses depois, ainda sem ter chegado ao seu destino final, os oficiais ordenaram que se voltasse àquelas ilhas em busca de frutas frescas, mandando distribuir três limões e uma laranja a cada soldado embarcado no final de outubro daquele ano.”

Sobre este documento

Título
Um sepulcro grande, amplo e fundo
Tipo de documento
Texto Acadêmico
Palavras-chave
História da Alimentação Viajantes
Origem

Jaime Rodrigues. “Um sepulcro grande, amplo e fundo: saúde alimentar no Atlântico, séculos XVI ao XVIII”. Revista de História de São Paulo, Nº 168, p. 325-350, janeiro / junho 2013. Disponível em:
http://revhistoria.usp.br

Créditos

Jaime Rodrigues

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