]7ª ONHB – Olimpíada Nacional em História do Brasil

Tratado descriptivo do Brasil
Trecho de livro

Grafia Atualizada

“Capítulo CIX

Em que se declara a qualidade das cobras, lagartos e outros bichos.

Agora cabe aqui dizermos que cobras são estas do Brasil, de que tanto se fala em Portugal, com razão: porque tantas e tão estranhas, não se sabe onde as haja.

Comecemos logo a dizer das cobras que os índios chamam jiboias, das quais há muitas de cinquenta e sessenta palmos de comprimento, e daqui para baixo. Estas andam nos rios e lagoas, onde tomam muitos porcos d’água, que comem; e dormem em terra, onde tomam muitos porcos, veados e outras muitas caças, o que engolem sem mastigar, nem espedaçar; e não há dúvida senão que engolem uma anta inteira, e um índio; o que fazem porque não têm dentes, e entre os queixos lhe moem os ossos para os poderem engolir. E para matar uma anta ou um índio, ou outra qualquer caça, erguem-se com ela muito bem, e como tem segura a presa, buscam-lhe o sesso com a ponta do rabo, por onde o metem até que matam o que tem abarcado; e como tem morta a caça, moem-na entre os queixos para a poder engolir. E como tem a anta, ou outra coisa grande que não pode digerir, empanturra de maneira que não pode andar. E como se sente pesada, lança-se ao sol como morta, até que lhe apodrece a barriga, e o que tem nela; do que dá o faro logo a uns pássaros que se chamam urubus, e dão sobre ela, comendo-lhe a barriga com o que tem dentro, e tudo o mais, por estar podres; e não lhe deixam senão o espinhaço, que está pegado na cabeça e na ponta do rabo, e é muito duro; e como isto fica limpo da carne toda, vão-se os pássaros; e torna-lhe a crescer a carne nova, até que fica cobra em sua perfeição; e assim como lhe vai crescendo a carne, começa a bolir com o rabo, e torna a reviver, ficando como antes: o que se tem por verdade, por se ter tomado isto muitas informações dos índios e dos línguas que andam por entre eles no sertão, os quais o afirmam assim.

E um Jorge Lopes, almoxarife da capitania de São Vicente, grande língua, e homem de verdade, afirmava que indo para uma aldeia do gentio no sertão, achara uma cobra destas no caminho, que tinha unido três índios para os matar, os quais livrara deste perigo ferindo a cobra com a espada por junto da cabeça e do rabo, com o que ficou sem força para os apertar, e que os largara; e que acabando de matar esta cobra, achara-lhe dentro quatro porcos, a qual tinha mais de sessenta palmos de comprimento; e junto do curral de Garcia de Avila, na Bahia, andavam duas cobras que lhe matavam e comiam as vacas, o qual afirmou que diante dele lhe saíra um dia uma, que remeteu a um touro, e que o levou para dentro de uma lagôa; a que acudiu um grande libréu, ao qual a cobra arremeteu e engoliu logo; e não pode levar o touro para baixo pelo impedimento que lhe tinha feito o libréu; o qual touro saiu acima da água depois de afogado; e afirmou que neste mesmo lugar mataram seus vaqueiros outra cobra que tinha noventa e três palmos, e pesava mais de oito arrobas; e eu vi uma pele de uma cobra destas que tinha quatro palmos de largura. Estas cobras tem as peles cheias de escamas verdes, amarelas e azuis, das quais tiram logo uma arroba de banda da barriga, cuja carne os índios tem muita estima, e os mamelucos, pela acharem muito saborosa.”

Glossário

Porco d’água: capivara. Sesso: Orifício posterior por onde saem os excrementos.
Língua: tradutor.
Libréu [Lebréu]: cão amestrado na caça das lebres; galgo.

Gabriel Soares de Souza. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Rio de janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1879, pp. 250-251. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01720400#page/1/mode/1up

Fonte: SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza , 1789. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/2

Sobre este documento

Título
Tratado descriptivo do Brasil
Tipo de documento
Trecho de livro
Palavras-chave
Colonização Indígenas Fauna
Origem

Gabriel Soares de Souza. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Rio de janeiro: Typografia de João Ignácio da Silva, 1879, pp. 259-260. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle

Créditos

Gabriel Soares de Souza

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