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Rio de Janeiro, 1977.
O robe de ouro
Chega-se ao fim de uma batalha que durou oitenta anos, tantos quantos os da Academia: as mulheres de agora em diante poderão se candidatar às vagas, ganhar a eleição, vestir o fardão com o peitoril de ouro. Como será o fardão das damas? Robe verde, pano de bilhar, ourama no parapeito, desenhado por Austregésilo. Apesar da ameaça do robe, apoio com alvoroço a luta pela entrada das literatas, voto a favor da proposição de Osvaldo Orico.
Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadêmicos foi uma das salafrarices cometidas por Machado de Assis quando fundou a chamada Ilustre Companhia, não foi a única, sujeitinho mais salafrário nosso venerado mestre do romance. Custou-lhe esforço chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito, culminou a carreira bem-sucedida de burocrata com a fundação da Academia: até hoje a preside, entronizado de sobrecasaca no pátio de entrada do Petit Trianon. Crítico entre amável e sarcástico da burguesia brasileira da época, da classe média alta, o mestre romancista; sustentáculo de seus privilegios e preconceitos, o cidadão Joaquim Maria Machado de Assis, marido de dona Carolina, casou com portuguesa.
Estabeleceu ele próprio a relação dos fundadores, inscreveu os vetos. Nem boêmios — Emílio de Menezes só pôde ser eleito após a morte de Machado —, nem mulheres. Na época havia uma escritora de renome estabelecido — e merecido, vale a pena ler seus romances, Júlia Lopes de Almeida, impossível passá-la para trás, se ela protestasse seria o escândalo, como fazer para não colocá-la entre os quarenta ilustres titulares? Machado, o manipulador, deu a volta por cima, encontrou como impor o machismo. Barganhou com dona Júlia: ela ficava de fora, mas em troca ficaria de dentro, acadêmico de número, o marido dela, Filinto d’Almeida, escrevinhador de pouca valia. A romancista achou, com razão, que o consorte precisava bem mais que ela dos bordados da Academia, cedeu-lhe a cadeira, a ela bastavam os romances. Com o quê Machado fechou de vez as portas do silogeu às saias femininas. Nem mulheres nem boêmios, mas teve vaga para jovem de 20 anos, quase inédito, Magalhães de Azeredo, dele se conhecia apenas páginas de louvor, aliás justo, aos livros do fundador da Instituição. Também vem de Machado a tradição das cadeiras reservadas aos candidatos das diversas categorias do poder, cadeiras cativas do Exército, da Igreja, do Judiciário, das letras médicas: a tradição dos expoentes perdura ainda hoje. Escritores, uns poucos e nem sempre os melhores. Deixa pra lá.
Certa quinta-feira, dia de sessão, na sala do chá testemunhei ácido debate entre Luiz Viana Filho e Magalhães Júnior a propósito de Rui Barbosa, alvo da crítica do rebarbativo Raymundo. A memória dos grandes homens, exemplo para a juventude, deve estar acima de qualquer restrição, branca de leite, limpa e polida de qualquer defeito, impoluta para a admiração da posteridade, arengava Luiz. Viu-me parado a escutar, olhou-me com o rabo do olho, sorriu-me mas, político habilíssimo, não pediu minha opinião. O cidadão Machado de Assis, não o romancista, muito tem se beneficiado com a tese da memória pulcra dos grandes mortos.
Na votação da proposta que abriu as portas da Academia às mulheres, Hermes Lima surpreendeu-me: voto contra. Vendo meu espanto, explica-me: isso aqui não passa de um clube de homens, Jorge, no dia em que entrar mulher nem isso mais será: nossa paz se terminará, a fofoca substituirá a convivência.
Um jornal faz uma enquete às vésperas da decisão, pergunta qual das nossas beletristas (!) deve ser a primeira a envergar o fardão — perdão, o robe. Em minha opinião, digo ao repórter nenhuma de nossas confrades merece mais a consagração, os pechisbeques (!) da Academia do que a poetisa — naquele tempo dizia-se poetisa, hoje poetisa é xingo — Gilka Machado, figura singular em nossa literatura. Poetou sobre o desejo da mulher, o tesão pelo homem, o amor sem peias quando as outras reservaram o coito para os confessionários das igrejas: ousou quando a ousadia significava discriminação, repulsa, abjeção. Sugeri que as prováveis candidatas assinassem manifesto propondo aos Acadêmicos o nome de Gilka Machado: mais que outra qualquer merecia ser a primeira mulher a ingressar no fatal cenáculo. A sugestão caiu no vazio das vaidades, tampouco eu acreditava fosse avante, sou ingênuo mas não tanto. As impacientes andavam pelos alfaiates, de figurino em punho, estudando o robe: ainda mais solene e triste do que o fardão.”
Glossário
Silogeu: Casa onde se reúnem associações literárias ou científicas
Pulcro: que possui beleza; belo, formoso.
Pechisbeque: liga de cobre e zinco que imita o ouro; ouro falso; objeto de pouco valor; brilho inautêntico, mistificação; deslumbramento gratuito.
Peia: corda ou peça de ferro que prende os pés dos animais.
Cenáculo: ambiente, cômodo em que era servida a ceia; local onde se realizou a Santa Ceia; sala para refeições em escolas, quartéis etc.; refeitório; grupo de pessoas com idéias e objetivos afins.
AULETE, Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. Lisboa [Portugal]: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, Disponível em: http://www.auletedigital.com.br/
Sobre este documento
Jorge Amado. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 2006, pp. 363-364.
Jorge Amado. Navegação de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 2006, pp. 363-364.