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“Além do machismo e do moralismo que essas ditas preocupações com o bem-estar das brasileiras não conseguem esconder, elas revelam que, na verdade, o grande problema dizia respeito não ao futebol em si, mas justamente à subversão de papéis promovida pelas jovens que o praticavam, uma vez que elas estariam abandonando suas ‘funções naturais’ para invadirem o espaço dos homens. Não por acaso, o foco do debate centrava-se nos usos que as mulheres faziam de seu próprio corpo, daí derivando-se o tema da maternidade. Nos anos 30 e 40, a associação entre o autoritarismo político e as idéias e ideais da eugenia fazia do corpo uma questão de Estado e o colocava na ordem do dia; segundo Alcir Lenharo, ‘sobre ele se voltam as atenções de médicos, educadores, engenheiros, professores e instituições como o exército, a Igreja, a escola, os hospitais. De repente, toma-se consciência de que repensar a sociedade para transformá-la passava necessariamente pelo trato do corpo como recurso de se alcançar toda a integridade do ser humano’. À mulher caberia, entre outras obrigações, contribuir de forma decisiva com o fortalecimento da nação e o depuramento da raça gerando filhos saudáveis, algo que, pensava-se, só seria alcançado se a mulher preservasse sua própria saúde. Se esta condição não excluía a prática de esportes, é certo que nem todo esporte a ela se adequava.
O futebol feminino, portanto, só poderia mesmo representar um ‘desvio de conduta’ inadmissível aos olhos do Estado Novo e da sociedade brasileira do período, pois abria possibilidades outras além daquelas consagradas pelo estereótipo da ‘rainha do lar’, que incensava a ‘boa mãe’ e a ‘boa esposa’ (de preferência seguindo os padrões hollywoodianos de beleza), principalmente, restrita ao espaço doméstico. Desvio tão inadmissível que a Subdivisão de Medicina Especializada recomendava que se fizesse uma ‘campanha de propaganda mostrando os malefícios causados pelo futebol praticado pelas mulheres, a fim de evitar lamentáveis consequências enquanto se aguarde medidas tendentes a permitir a interferência dos Poderes Públicos em tais questões (…)’.
Ao que tudo indica, tal campanha não chegou a ser desencadeada, embora a idéia do parecerista fosse endossada pelo chefe da Divisão de Educação Física, major Barbosa Leite, em observação manuscrita ao final do documento da Subdivisão de Medicina Especializada, datada de 23 de maio de 1940. Nas palavras do major, ‘seria conveniente interessar o DIP na execução da campanha indicada no parecer, para a qual poderá ser ordenada a cooperação desta Divisão’. No entanto, a sugestão da ‘interferência dos Poderes Públicos em tais questões’ parece ter sido acatada, uma vez que o Decreto-lei 3.199, que em abril de 1941 instituiu o Conselho Nacional de Desportos (CND), afirmava em seu artigo 54 que ‘às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país’.
Ao ‘proteger’ a ‘natureza feminina’, a lei atendia ao apelo daqueles que condenavam a prática do futebol pelas mulheres, e ainda deixava a critério do CND a definição de quais esportes elas poderiam praticar. E havia uma série de esportes ‘recomendáveis’, como já mostrava o citado laudo da Divisão de Educação Física do Ministério da Educação e Saúde: tênis, voleibol, críquete, natação, ciclismo — estes dois últimos desde que ‘praticados moderadamente’, conforme ressalvava o documento. Todos eles esportes amadores, característicos da elite, que, quando muito, atingiam a classe média, passando ao largo das grandes massas e dos subúrbios onde as jovens corriam atrás da bola”.
Sobre este documento
Fábio Franzini. “Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol”. Revista Brasileira de História, vol.25 no. 50 São Paulo July/Dec. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php
Fábio Franzini