As pistas do monarca do Congo
Artigo de Revista

Rugendas retratou o Palácio Velho de Ouro Preto, mas o atento pesquisador pode ter visto mais: a imagem do escravo-monarca.

Na prancha ‘Fête de Ste. Rosalie’, executada a partir de desenhos feitos entre 1821 e 1825, haveria uma representação da festa em homenagem a Santa Efigênia, de quem Chico Rei seria devoto.

Certa vez, estudando a devoção por São Benedito em Angra dos Reis, estava refletindo sobre algumas páginas de Viagem no interior do Brasil, do naturalista austríaco Johann Emanuel Pohl (1782-1834). Ele visitou a cidade fluminense na segunda-feira de Páscoa de 1818, participando das festas dos negros para aquele santo. Alguns meses depois, em Traíras, Goiás, assistiu a outra festa de negros, em louvor a Santa Ifigênia. Decidi inserir um resumo de ambos os relatos num artigo que estava escrevendo sobre São Benedito para uma revista italiana. Como precisava de ilustrações adequadas, lembrei-me de uma litografia de Rugendas (1802-1858) sobre uma festa do Rosário num lugar não identificado.

Comprei O Brasil de Rugendas (edição italiana), com todas as litografias de Voyage Pittoresque dans le Brésil, derivadas de desenhos executados in loco entre 1821 e 1825. Ainda não sabia que a litografia original não era colorida. Mandei escanear aquela reprodução, a penúltima, para depois enviar o arquivo à revista italiana. Reparei que a litografia trazia uma legenda em francês: Fête de S.te Rosalie, Patrone des Nègres. Não me lembrava dela porque fica sempre omitida, ao pé da cena reproduzida em livros em museus. Fiquei surpreso com a coincidência, por ser Santa Rosália a padroeira de Palermo, capital da Sicília, onde, em 1589, morreu São Benedito.

Notei que atrás do grupo havia uma igreja numa elevação, parecida com o Morro da Cruz em Ouro Preto. Reza a lenda que aquela igreja, chamada também de Nossa Senhora dos Pretos do Alto da Cruz, foi construída entre 1733 e 1745, e foi paga pelos escravos com o ouro subtraído da Mina da Encardideira. Deduzi que havia um erro na legenda (S.te Rosalie em lugar de S.te Iphigénie), e que a litografia representava a festa dos negros de Ouro Preto para Santa Ifigênia, a mesma festa, até nos pormenores, vista e relatada em Traíras por Pohl em 1819.

Para confirmar a identificação, precisava de outros pontos de referência: em primeiro lugar: o casarão parcialmente visível à esquerda. Procurei um guia do Brasil, fui ao mapa de Ouro Preto. Virei o mapa 90 graus, no sentido anti-horário, para colocar a igreja de Santa Ifigênia na posição em que estava na litografia. Dei-me conta de que o ‘casarão’ ocupava a posição topográfica do Palácio Velho de Ouro Preto.
Comecei a olhar as personagens com outros olhos.
Um dos dois cavaleiros que assistiam à festa parecia ser o mesmo Rugendas. Notei que o homem ao centro, em primeiro plano, vestido só com um trapo vermelho, carregando uma bandeira e com um menino à esquerda, não fazia parte do grupo: olhava para os demais, junto com os cavaleiros e o menino, e parecia pertencer a uma época anterior. Fiquei arrepiado. O grupo tinha sido retratado no mesmo local da Mina da Encardideira, adquirida, segundo a lenda, pelo ex-escravo Chico Rei, depois de ter resgatado seu filho. Pensei: o local é uma das bocas daquela mina; o homem com a bandeira é uma alegoria do mesmo Chico Rei, tendo o filho à esquerda e apresentando os dois estrangeiros a festa de Santa Ifigênia, padroeira dos negros de Ouro Preto. Concluí: desse modo, a lenda de Chico Rei, que dizem ter sido inventada no começo do século XX, tem de ser antecipada em 80 anos, e será lenda ou realidade?

No final de semana, fui a Ouro Preto. Contratei o melhor guia local e lhe pedi que me conduzisse ao que sobrou do Palácio Velho, numa propriedade particular. Fui bem recebido, sem que me perguntassem a razão da visita. Desci até a horta e fotografei as ruínas da fachada, a igreja e algumas araucárias. Na segunda-feira, em São Paulo, comprei outro livro: Rugendas e o Brasil, de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa. Li que ele havia visitado Ouro Preto em 1824. Fiz um slide com o local visto no Google Earth, a litografia e a justaposição das fotos feitas em Ouro Preto. Passei um dia escrevendo uma ficha com interpretação inédita da litografia. A ‘diversão’ estava encerrada. Meses depois, a comissão [de uma revista] me convidou para escrever um artigo sobre o tema. Assim tive a oportunidade de desenvolver a ideia inicial.

Rugendas teve que assistir à festa entre novembro de 1824 e fevereiro de 1825. O grupo retratado é formado por mais ou menos trinta personagens, reunidos ao redor do rei e da rainha, no centro de um ritual apresentado aos viajantes europeus num espaço simbólico. Alguns homenageiam o rei e a rainha, outros quatro estão tocando instrumentos; um quinto personagem marca o tempo com uma folha de palmeira, atributo de Santa Ifigênia. Outros descem correndo da igreja, ladeira abaixo. Dos três estandartes, o primeiro à esquerda tem um sol radiante; o do meio tem meias luas replicadas; o terceiro, algumas linhas curvas que lembram o manto carmelita da Santa Ifigênia, enquanto o sol e a lua têm correspondência na simbologia introduzida pelo carmelita José Pereira de Santa Anna em 1735, na qual comparou Santo Elesbão com o sol e a Santa Ifigênia com a lua.

O personagem em primeiro plano é a base lógica da composição. Enfrenta o grupo arqueado, em eixo com os cavalos. À esquerda, há um menino representado de costas, olhando para o grupo com ar alegre e maravilhado. Os dois ficam separados do grupo da irmandade, e isolados por algumas pinhas caídas de araucárias. Tanto o grupo em festa como os cavaleiros os ignoram totalmente: só o cavalo preto parece perceber a presença deles. Portanto, a cena aparece como uma representação alegórica: Chico Rei, devoto de Santa Ifigênia, que com seu filho menino presencia a festa conga para a santa padroeira dos negros de Ouro Preto. Na época em que a igreja foi construída no Morro da Cruz, São Benedito não podia ser titular de um templo por não ser ainda ‘santo verdadeiro’ – só seria canonizado em 1807.

Chico Rei teria sido um rei do Congo. Sequestrado com a família na primeira metade do século XVIII, supostamente embarcou num navio negreiro, aportado no Brasil como escravo, chegando a Vila Rica mais ou menos em 1740, só com o filho: a esposa e a filha não haviam sobrevivido à viagem. Assumida a nova condição, batizado e destinado à lavra nas minas de ouro, com suas economias, teria comprado sua liberdade e depois a do filho. Após adquirir a Mina da Encardideira, em vias de esgotamento, e multiplicar sua produção, compraria a liberdade de muitos escravos do grupo. Teria se estabelecido no Palácio Velho, antiga residência dos governadores portugueses. Chico Rei enriqueceria a ponto de financiar a construção da Igreja de Santa Ifigênia, onde, anos depois, teria sido coroado rei, com a aprovação do bispo de Mariana e a concordância do governador português.

A prova de que se trata de Chico Rei na obra é o emblema em claro-escuro na bandeira: um perfil feminino com uma folha de palmeira na mão direita. Chico Rei, devoto de Santa Ifigênia, carrega a bandeira com a imagem da santa em presença dos viajantes estrangeiros – este ato o identifica como o financiador da Igreja de Nossa Senhora do Morro da Cruz.

Fico grato à memória do grande José Mindlin, que me permitiu examinar e fotografar de perto aquele detalhe numa primeira edição da sua biblioteca. A prancha colorida, na edição moderna, havia alterado o claro-escuro da bandeira. Rugendas teve que elaborar o desenho final na Europa, com base em alguns trabalhos preparatórios executados ao vivo, usando a alegoria, na sua reflexão sobre a escravatura, como ‘filtro’ da complexidade do Brasil.
O historiador Robert Slenes, analisando a quarta divisão do Voyage – sobretudo a prancha inicial, Nègres a Fond de Calle -, chegou à mesma conclusão: trata-se de uma viagem à procura de alegorias.

Dois séculos e meio nos separam de Chico Rei. O historiador Diogo de Vasconcelos (1843-1927) foi o primeiro a tratar o tema por escrito, em 1904, numa nota da História Antiga de Minas. Foi acusado de ter inventado tudo. Em primeiro lugar, por não ter citado fontes escritas. Em segundo, por ter dado a impressão de ter saudade da época em que os escravos eram humildes e submissos. Em terceiro, por ter apresentado Chico Rei como um homem do Rei e homem de Deus, precursor do cooperativismo e do cristianismo social.

Minha hipótese transfere a origem da lenda para antes da época e das circunstâncias históricas em que os africanos de Vila Rica elaboraram as suas tradições. Os escravos das minas veneravam Chico Rei como os gregos da época clássica veneravam os heróis fundadores das colônias. Como afirma Marina de Mello e Souza, em Reis negros no Brasil escravista: ‘Representando um mito, um herói-fundador, o rei congo atribuía às comunidades que o elegiam uma identidade que as ligava à África natal, ao mesmo tempo em que abria os espaços possíveis no seio da sociedade escravista’.”

Sobre este documento

Título
As pistas do monarca do Congo
Tipo de documento
Artigo de Revista
Palavras-chave
Minas Gerais Historiografia Metodologia Viajantes
Origem

Alessandro Dell’Aira. Revista de História, 8 de dezembro de 2010. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/as-pistas-do-monarca-do-congo

Créditos

Alessandro Dell’Aira

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