Fábulas da modernidade no Acre
Texto acadêmico

“Nossa narrativa começa a partir do dia 27 de fevereiro de 1929, quando José Nobre de Lima, esposo de Antônia Nobre de Lima, falecida no dia anterior, prestou queixa na Delegacia de Polícia de Rio Branco contra o médico higienista Sebastião de Melo, que se recusava, veementemente, a emitir o atestado de óbito da falecida, impedindo com isso, que o sepultamento fosse realizado, já que o documento era exigido pelo Código de Posturas (…).

Sebastião de Melo era figura respeitada na sociedade acreana, o que causou estranheza na delegacia a queixa que estava sendo registrada. Ao ser convidado para explicar o ‘incidente’, o médico ressaltou que a sua recusa em emitir o atestado de óbito dava-se devido a sua suspeita de que Antônia Nobre, que era sua paciente, tivesse recebido tratamento de um curandeiro e isso tivesse a levado a morte.

(…) A prática do ‘curandeirismo’ era expressamente proibida pelo Código de Posturas de 1928. No artigo 188 estavam explícitos os impedimentos, bem como as penalidades impostas a quem desrespeitasse a Lei: ‘Todo aquelle que exercer o officio de curandeiro, propondo-se a curar enfermidade de qualquer natureza, empregando para isso substâncias conhecidas ou não, será passivel de pena de multa de 100$000 a 500$000’.

(…)

A partir dos primeiros esclarecimentos prestados por Sebastião de Melo, o queixoso é que passou a ter que se explicar. José Nobre teve que esclarecer se havia, ou não, recorrido aos ofícios de um ‘curandeiro’ e se assim tivesse feito, qual o nome deste curandeiro.
De acordo com dados, que constam no processo judicial (…) José Nobre de Lima alegou dificuldades financeiras para tratar a esposa, que sofria de uma moléstia na garganta e que, a pedido da enferma, solicitou a presença de Zenon Loureiro em sua residência.

(…) O problema agora deixara de ser o atestado de óbito não emitido e transformara-se em um caso de prática ilegal de medicina por um curandeiro. Durante todo o dia 27 de fevereiro, O Sr. José, que queria apenas sepultar a esposa morta, teve de dar explicações na Delegacia, enquanto terceiros velavam o corpo da falecida.

Tendo sido entregue o nome do suspeito de ter praticado a sessão de curandeirismo, a força policial (…) deslocou-se até a residência de Zenon e o trouxe até a Delegacia para depor. Em seu depoimento, o mecânico esclareceu que fora chamado a casa da enferma a pedido da mesma e que lhe deu um copo de água com quatro gotas de belladona. No entanto, Zenon negou ser curandeiro e, de forma enfática, fez questão de ressaltar que sobrevivia de seu trabalho:
‘Eu passava em frente a casa da D. Antonia Nobre e esta me chamou dizendo se era verdade que eu fazia uso próprio da homeopatia, ao que eu confirmei que sim. Foi quando ela perguntou se eu podia ceder um pouco de homeopatia para a garganta. Eu me prontifiquei a ceder quatro gotas de belladona num copo de água, informando como deveria usar. Foi o Sr. José Nobre quem foi buscar o remédio na minha casa. O que posso afirmar é que, além do remédio não fazer mal, soube ainda que não foi usado pela doente. Afirmo também, que não faço profissão de cura de quem quer que seja, pois vivo da minha profissão de mecânico. ’

(…)

Segundo Sebastião de Melo, as suspeitas de que Antônia fora vítima de um curandeiro, começaram quando da visita que realizou a casa da paciente e percebeu a frieza com que estava sendo tratado pela família. Mediante o desprezo que recebia, questionou o que estava ocorrendo, quando fora comunicado da visita de Zenon. Suas suspeitas foram confirmadas. Ciente do que ocorrera, procurou então o Sr. José Nobre para pedir explicações sendo, mais uma vez, tratado friamente. Sentindo-se desprestigiado o médico afirmou que, a partir daí, não mais trataria de Antonia Nobre e caso ocorresse qualquer problema com a paciente, culparia o ‘curandeiro’.
É importante ressaltar, que o tratamento realizado por Sebastião de Melo, demonstrava-se extremamente ineficaz. A não melhora de Antônia Nobre começou a causar desconfianças nos amigos e familiares da enferma que terminaram por, durante seus depoimentos, explicarem o descaso com que o médico vinha tratando sua paciente. Nas falas de Jovina Teles, ela afirma: ‘Falei para o doutor Sebastião de Melo que sua cliente estava muito doente e ele me respondeu que ignorava isso’.

(…)

Para tentar resolver a pendência, foi solicitada à Diretoria de Higiene a realização de uma necropsia no cadáver de Antônia. De acordo com o médico, essa seria a única forma de detectar a causa da morte e o livraria de tão ‘infame acusação’. O pedido foi feito pelo Delegado que comandava o inquérito, mas não pode ser levado adiante. Em resposta a solicitação feita, a Diretoria de Higiene respondeu, através de documento expedido em 28 de fevereiro de 1929: ‘O relatório não foi feito porque a Diretoria não se acha aparelhada para exames de necropsia, por falta de material e instrumentos apropriados’.

Por não se achar com condições para realizar o exame, a própria Diretoria de Higiene terminou por emitir o atestado de óbito e a autorização para o sepultamento. A falta de provas, no entanto, não foi suficiente para que Zenon Loureiro não pagasse multa por ‘feitiçaria’. Quanto a Sebastião de Melo, este foi devidamente inocentado”.

Sobre este documento

Título
Fábulas da modernidade no Acre
Tipo de documento
Texto acadêmico
Palavras-chave
Século XX usos e costumes História da medicina Acre
Origem

Sérgio Roberto Gomes de Souz. Fábulas da modernidade no Acre: A utopia modernista de Hugo Carneiro na década de 1920. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História, Recife, 2002, p.107-116. Adaptado

Créditos

Sérgio Roberto Gomes de Souz

Login alterado

O usuário logado na sessão atual foi alterado em outra aba ou janela. É necessário atualizar a página.

Login alterado

A equipe logada na sessão atual foi alterada em outra aba ou janela. É necessário atualizar a página.