Deixamos aqui nossa homenagem ao saudoso colega historiador Tiago de Melo Gomes (1972-2016)
“(…) por mais que diversas peças dos anos 1920 mostrem malandros e mulatas representando um alegre, festivo e mestiço caráter nacional, isto não significa que todos os espectadores voltassem para suas casas convencidos de que esta associação seria plenamente verdadeira, ficando orgulhosos com esta constatação. (…) O fato de tais tipos consagrados surgirem como símbolos nacionais não apenas nas peças do período, mas em inúmeras outras fontes, com inegável recorrência até os dias de hoje, não impede que esse repertório comum de símbolos permita interpretações múltiplas. Uma peça do gênero poderia apenas divertir espectadores que conhecessem dezenas de malandros e mulatas de carne e osso, e que identificariam nos personagens da peça caricaturas divertidas de seus vizinhos e conhecidos. Outros espectadores, eventualmente dotados de preconceitos raciais, poderiam, mesmo admitindo o caráter ‘típico’ de tais personagens, ter uma postura crítica sobre sua importância na cultura brasileira, concordando com o quadro desenhado mas deplorando tal situação. Cenas desse tipo poderiam ainda reforçar ou desmentir crenças desenvolvidas anteriormente pelos espectadores sobre o caráter nacional. Mas esta diversidade de interpretações possíveis torna bastante claro o quanto o teatro de revista poderia servir como um espaço no qual questões cruciais daqueles anos circulavam livremente e eram negociadas diariamente.
Nesse contexto, a trajetória da Companhia Negra de Revistas, no segundo semestre de 1926, salta aos olhos como objeto singular para um estudo do período. A troupe, que reunia artistas de renome como Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveira, Sebastião Cirino e De Chocolat, alcançou grande sucesso em todo o segundo semestre daquele ano no Rio de Janeiro e em São Paulo, dissolvendo-se no fim do ano, após sofrer inúmeras defecções. Fundada pelo cenógrafo português Jaime Silva e o compositor De Chocolat, a companhia fazia questão de apontar sua inserção no campo de negociação da questão racial a partir de seu próprio nome, que ressaltava a origem de seus membros, assim como da denominação de sua primeira e mais importante peça: Tudo Preto, de autoria de De Chocolat. Tal peça era caracterizada justamente por debater intensamente os temas mais caros para a constituição da identidade nacional naquele momento. Mestiçagem, influências raciais em um conceito mais geral de “cultura brasileira”, racismo, influências regionais diferenciadas em um caráter nacional único (…) eram colocadas em discussão por uma companhia de teatro que se identificava como ‘negra’, perante um público tão amplo quanto internamente diferenciado seja em termos étnicos como no aspecto socioeconômico.
(…) A trajetória da Companhia Negra de Revistas mostra como, através de seus próprios canais de articulação, outros grupos poderiam tomar parte ativa na construção dessa identidade.”
Sobre este documento
Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, p.303-306.
Tiago de Melo Gomes